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Um “privilégio” – é assim que o investigador CE3C Hugo Rebelo descreve a oportunidade de estudar os organismos que o apaixonam num cenário a que poucos sonharam chamar “área de estudo”. A presença de morcegos na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra tem conquistado a atenção dos meios de comunicação nacionais – e até internacionais – ao longo dos anos, resultando em peças repletas de fascínio que destacam o papel destes seres alados noctívagos na defesa dos cerca de 30 mil livros dos insetos que os poderiam devorar. Este serviço, de valor incalculável dado o património que protegem, está agora a ser efetivamente desvendado num estudo que procura conhecer a dieta dos morcegos através das ferramentas da genética.



Magnânimo

Saímos logo após o almoço da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CIÊNCIAS). A hora ditava que não iríamos encontrar morcegos em voo na Biblioteca, mas era esse mesmo o objetivo. Para descobrir o que comem, não é necessário vê-los em ação, até porque a velocidade dos seus movimentos, o seu pequeno tamanho e a diminuta dimensão das suas presas impediriam uma observação rigorosa. O segredo está em analisar o último capítulo da caçada, ou melhor, da digestão: os excrementos, denominados por guano. Longe das camadas de guano – algumas com metros de altura ou profundidade – que se acumulam nas grutas que chegam a albergar dezenas de milhões de indivíduos, como a recordista Bracken Cave, no Texas; na Biblioteca, os vestígios de guano limitam-se a agregados milimétricos dispersos entre o chão, os corrimões e as demais estruturas do espaço. Existe um local particular que gera sempre algum suspense.

“Será que há alguma coisa no rei?”


“Será que há alguma coisa no rei?” interroga-se o mestrando Tiago Lapão, que tem numa das belas bibliotecas do mundo a sua hipótese B para tese do Mestrado em Biologia da Conservação de CIÊNCIAS (a hipótese A era outra icónica obra encomendada por D. João V – o Aqueduto das Águas Livres, imagine-se). Dando razão às probabilidades extremamente baixas de um possível incidente, o busto de D. João V apresenta-se altivo e imaculado no átrio poente da nave da biblioteca. “Já lá encontrei guano duas vezes”, partilha Hugo Rebelo, seu orientador, aludindo à invisível fragilidade da aura impenetrável que protege a valiosa imagem do monarca.

Ao lado de D. João V, esperam-nos as técnicas Mafalda Nobre e Inês Borges, num gabinete impossível de detetar a partir das cordas que delimitam a meia-lua de passagem e o momento “uau” dos turistas, cingida à zona de entrada da nave. No lado oposto, avistam-se relíquias sobre mesas antigas que contrastam com o scanner, o real transportador de páginas, capítulos e livros da madeira das estantes rococó para prateleiras digitais. Feita a exceção, tudo o resto é antigo. Vê-se, cheira-se e sente-se o peso dos séculos e dos ilustres autores que em Mafra deixaram repousar o melhor conhecimento produzido entre os séculos XV e XIX. A aparente cristalização de um acervo enriquecido durante mais de 200 anos contrasta com a vivacidade consciente da missão que a define, e que a continua a projetar o seu passado no presente e para o futuro através da investigação, da evocação da história e celebração da cultura.

Ao invés de se assumir simples e orgulhosamente como uma fotografia do passado, a Biblioteca evoca uma cápsula do tempo, magnânima como o seu rei.


Aqui, o busto assinala a presença possível de D. João V numa obra que nunca visitou e cuja imaginação pôde apenas conceber, encomendando ao filho, D. José I, e neta, D. Maria I. a construção das estantes e a ordenação dos livros. No símbolo do astro rei que coroa a abóboda, D. João V hasteou o sonho iluminista de um reino liderado pelo saber, capaz de se desenvolver socialmente e afirmar-se na Europa.

In-stantes

Inês Borges deixa-nos à vontade e procede nos seus afazeres, seguindo nós por um vão de escadas escuro no lado Norte que dá acesso piso superior da Biblioteca – o escritório de Hugo e Tiago. A confiança entre as equipas é notória e nasce de uma relação construída ao longo dos últimos 13 anos. Hugo Rebelo começou a estudar a colónia de morcegos residente em 2012, tornando-se da casa também, o que o leva a emanar naturalmente em cada conversa o seu respeito, estima e gratidão pela oportunidade de trabalhar nesta envolvente única e com quem dela cuida. Pousadas as mochilas nas escadas iluminadas pela ténue luz natural que chega da nave, revêem-se num instante os procedimentos e confirma-se que o material veio todo. É a terceira vez que o fantasma do material esquecido surge, e percebe-se o porquê: regressar ao carro implica um trajeto com cerca um quilómetro que parece percorrer todas as 1200 salas do edifício, muito embora se atravessem cerca de uma dúzia entre a entrada e área de estudo no 4º piso. Sorrindo com um ligeiro toque de nervosismo desperto pelas recordações, Hugo revela que já se esqueceu duas vezes de equipamento no carro. Diluídas nos anos e frequência com que visita a Biblioteca parece muito pouco, mas foi o suficiente para que um pequeno trauma se instalasse e passasse a ser partilhado pelo mestrando.

Com a lista verificada, Tiago segue atentamente ao longo do varandim do piso superior em busca de milímetros de guano depositado sobre o corrimão ou nas estantes que permanecem historicamente privadas dos acabamentos finais em marmoreado e ouro que estavam previstos, e dos retratos de renomados autores. A crise económica instalada no final do reinado de D. João V, provocada, entre outros motivos, por doença do mesmo e redução da quantidade de ouro do Brasil, determinou que os planos iniciais fossem abandonados e nunca mais retomados.

Pouco depois, Inês regressa até nós para mostrar uma das suas descobertas. No sopé da estante número dez, por detrás do degrau encaixado que dá acesso às prateleiras superiores, acumula-se uma quantidade mais visível de guano. Deitado de costas e olhando para cima – e desafiando Tiago a fazer o mesmo de seguida, em jeito de praxe ao futuro quiroptólogo – Hugo Rebelo espreita para a câmara de ar que separa a parede exterior do edifício da parede interior das estantes, como se estivesse a olhar por uma porta entreaberta para a casa de alguém. Com um espaçamento surpreendente, superior a um palmo entre as duas paredes, que se prolonga praticamente por todo o perímetro da Biblioteca, a câmara de ar é essencial para manter a temperatura e humidade do seu interior em níveis que assegurem a preservação de todo o seu conteúdo. São aqui também os vastos aposentos dos morcegos que se começam a aventurar ao crepúsculo pela nave da Biblioteca em busca de presas, saindo para o exterior por orifícios que só eles conhecem.“Eles conhecem o Palácio muito melhor do que nós” adianta o investigador CE3C.

“Eles conhecem o Palácio muito melhor do que nós”

Devoradores de livros

Pinça, isqueiro e eppendorfs (pequenos tubos de plástico com tampa) numa caixa para recolher e armazenar o guano; um computador, cartões de memória e pilhas para descarregar dados e renovar o tempo de vida dos audiomoths, pequenos aparelhos que captam e registam os sons emitidos pelos morcegos no comportamento de ecolocalização. São estes dois singelos conjuntos de equipamentos que estão a permitir conhecer um pouco melhor a colónia de morcegos da Biblioteca, nomeadamente de que espécies se trata, o que comem e caracterizar a sua atividade ao longo do ano. Os resultados preliminares apontam para uma colónia com algumas dezenas de indivíduos de quatro espécies: o morcego-hortelão-escuro (Eptesicus serotinus), uma das maiores espécies de mamíferos voadores da Europa, podendo atingir os 38 centímetros de envergadura (aproximadamente a largura de um computador portátil regular); no pólo oposto, o morcego-anão (Pipistrellus pipistrellus), o mais pequeno do continente europeu, com cerca de metade do tamanho do anterior;  o morcego-arborícola-pequeno (Nyctalus leisleri), com o seu característico pêlo dorsal, escuro na base e castanho nas pontas; e o carismático morcego-orelhudo-cinzento (Plecotus austriacus), cuja imagem é muito reveladora da sua designação.

Ignorando por completo a disciplina que a obra aborda, os insetos bibliófagos parecem não distinguir o dourado das inscrições que dão nome aos livros.


Quanto à dieta, parece incluir alguns insetos “bibliófagos”, particularmente vorazes para com o couro da capa dos livros e com os nervos que sustentam a encadernação nas lombadas. Ao invés do esperado, as inimigas não são as traças, presumíveis arqui-inimigas que surgem logo no nosso imaginário quando pensamos em livros rendilhados; essas, afinal, vão sendo eliminadas de forma passiva. Ignorando por completo a disciplina que a obra aborda, os insetos bibliófagos parecem não distinguir o dourado das inscrições que dão nome aos livros, alimentando-se de medicina, astronomia, ciências exatas e naturais, religião, arte, direito, arquitetura ou história, e nem os famosos volumes proibidos pela Inquisição, arrumados sobre a trivial designação de “Miscelânea vária P.”, escapam. “O P. era de Proibido, mas abreviado de abreviado de forma a não criar curiosidade sobre o conteúdo das mesmas”, partilha a equipa da Biblioteca.

Confirmar que os morcegos residentes predam estes insetos específicos é vital para que o romantismo da história frequentemente levantada pela comunicação social assente numa base científica, capaz de informar os gestores de monumentos similares deste importante serviço. A raridade do estabelecimento de colónias de morcegos em bibliotecas deve-se aos meios mais agressivos com que equipamentos similares, com equivalente longevidade e interesse cultural, são desinfestados, eliminando todos os seres que nela habitam. A par da Biblioteca em Mafra, a sua irmã Joanina de Coimbra – mais afortunada em termos de desfecho decorativo – também conta com uma equipa de morcegos no turno da noite, embora de menor dimensão. Graças às ferramentas da genética, Hugo e Tiago irão finalmente identificar os protagonistas desta teia alimentar passível de ser replicada noutros locais com condições semelhantes, reduzindo custos de manutenção, aumentando a biodiversidade e promovendo a coexistência dos patrimónios natural e cultural.

Buffon sabia

O “Convento” da gíria de Saramago, ou melhor, o Real Edifício de Mafra, maior monumento português, classificado como Património Mundial pela UNESCO acolhe anualmente centenas de milhares de visitantes vindos de todo o mundo. Chegados à Biblioteca, os visitantes são brindados com o sempre inesperado conto de um espaço guardado por morcegos, narrado pela voz dos guias e ilustrado por uma caixa onde jazem um grande morcego-orelhudo-cinzento e dois morcegos-anões, perpetuando esta sinergia ímpar.

“Hoje gostamos muito deles, sabemos o seu papel e as pessoas adoram ouvir a história”


O orelhudo, especificamente o que é exibido aos visitantes, é tido como o célebre fundador de toda esta história. Num compasso de espera à saída, enquanto Hugo e Tiago terminam os procedimentos, Mafalda Nobre recorda “a aberração” com que se depararam numa manhã em tempos idos. “Parecia que o bicho tinha 4 orelhas! Tínhamos receio que fosse um cruzamento entre espécies!” relata sentada à secretária num gabinete repleto de representações de morcegos. Em pleno exercício de avivar a memória, Mafalda vai exibindo um entusiasmo pelos colegas noctívagos com quem partilha a missão de proteger a Biblioteca, desembocando na conclusão que o seu rosto e tom já transpareciam – “Hoje gostamos muito deles, sabemos o seu papel e as pessoas adoram ouvir a história”. Como que num perfeito arco narrativo, Hugo recorda um livro do acervo da Biblioteca que lhe havia sido mostrado, com ilustrações antigas de morcegos. Incerto do seu lugar, Mafalda recorda outro com que se havia cruzado. Sobe ao piso superior e desce com um livro nas mãos, folheando-o para encontrar o que procurava. Dentro do Tomo VIII de L’Histoire Naturelle, générale et particulière, avec la description du Cabinet du Roi, de 1760, escrito por nada menos, nada mais, do que o icónico naturalista francês, Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, Mafalda exibe ilustrações científicas de morcegos-anões e morcegos-orelhudos. Se dúvidas houvesse, caíram por terra: existem morcegos na Biblioteca desde o século XVIII.

 


Agradecimento pelos contributos de Hugo Rebelo, e da equipa do Palácio Nacional de Mafra, na pessoa do seu Diretor, Sérgio Gorjão, da Diretora da Biblioteca, Teresa Amaral, e das técnicas Inês Borges e Mafalda Nobre.

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