
A Amazónia brasileira está a atravessar um processo de transformação social e ambiental profundo. O quotidiano das comunidades que residem na mais vasta floresta tropical do mundo está a ser progressivamente influenciado por pressões externas que desafiam costumes, hábitos e o próprio modo de vida. Uma das mudanças mais evidentes está a ser caracterizada pela doutoranda CE3C Daiane da Rosa: a alimentação e padrão de consumo das comunidades ribeirinhas.
O estilo de vida das comunidades ribeirinhas da Amazónia é indissociável da dinâmica dos ecossistemas fluviais, dos bens e serviços proporcionados pelas linhas de água. Ao longo do tempo, o conhecimento acumulado sobre a sazonalidade dos rios e ribeiras, a fauna e flora aquática e ripícola, bem como os ciclos de abundância e escassez, moldou uma identidade única marcada por uma elevada resiliência biocultural. Até ponto essa resiliência irá resistir num cenário disruptivo onde as pressões sociais, socioeconómicas, ambientais e culturais se avolumam?
Para responder esta questão, Daiane da Rosa, doutoranda CE3C no grupo de investigação em Ecologia de Sistemas, encontra-se a caracterizar as transições em curso nos padrões de alimentação e consumo das comunidades ribeirinhas que habitam nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã, na região do Médio Solimões, estado do Amazonas.
Desenvolvemos essa pesquisa em comunidades com diferentes acessos aos centros urbanos e aos supermercados. Estamos investigando como isso pode estar influenciando o consumo de alimentos industrializados, em especial os ultraprocessados.
A substituição gradual de alimentos tradicionais, como peixe e a mandioca, por produtos industrializados e ultraprocessados – uma tendência observada em várias partes do mundo – ganha contornos específicos quando analisada em territórios com costumes tão distintos, podendo somar ao impacto cultural consequências significativas na saúde pública e nas interações estabelecidas com os ecossistemas.
Os dados recolhidos entre 2023 e 2024 revelaram que, apesar da persistência de uma base alimentar tradicional, há um consumo crescente de produtos processados, sobretudo entre as crianças e jovens, muito influenciado pelas opções alimentares disponíveis nas escolas. Esta constatação é particularmente relevante, pois mostra como o menu escolar, frequentemente desenvolvido como instrumento de combate à pobreza alimentar e fome, pode também atuar como vetor de transformação cultural e ecológica.
Esses hábitos se estabelecem. As crianças aprendem a comer de determinada forma na escola e levam isso para casa, influenciando, inclusive, a alimentação do restante da família. É um ciclo de transformação que está em processo.

No outro extremo da pirâmide etária, os “anciãos das comunidades”, na sua qualidade de redutos de memória individual e coletiva, permitiram reconstruir um panorama histórico da alimentação local. Nas entrevistas realizadas, indicaram que os primeiros contactos com alimentos industrializados remontam ao início do século XX, quando os “regatões” – embarcações comerciais – começaram a trocar café, açúcar, bolachas e manteiga por alimentos produzidos localmente. Segundo Daiane da Rosa, este momento marcará a primeira grande transição alimentar na região, na qual uma dieta baseada em alimentos produzidos e transformados localmente, como a farinha de mandioca, a tapioca ou os bolos de massa, passou a incorporar produtos processados. Os novos alimentos tornaram-se assim progressivamente parte da mesa ribeirinha, num processo de mudança contínua que persiste até hoje.

Com uma vertente fortemente participativa, o estudo incluiu também oficinas práticas com os membros das comunidades, centradas na literacia alimentar. Durante essas sessões, os participantes aprenderam a interpretar rótulos de produtos, reconhecer ingredientes prejudiciais à saúde e refletir sobre os impactos do consumo de alimentos ultraprocessados – conhecimentos muitas vezes ausentes do quotidiano escolar e familiar. Esta componente educativa, orientada por uma lógica de partilha e capacitação, foi particularmente valorizada pelos participantes, que destacaram o seu potencial para transformar práticas locais e reforçar a autonomia alimentar.
Percebemos, a partir das interações com as comunidades, que existe uma carência muito grande de informação sobre alimentação e saúde. Por isso, a devolutiva se tornou também uma oportunidade de informar essas pessoas para que possam fazer melhores escolhas alimentares no dia-a-dia.
Graças à sua natureza marcadamente interdisciplinar, a investigação propõe-se a desenvolver um índice de diversidade biocultural alimentar, uma ferramenta inovadora que permitirá avaliar o grau de resiliência das comunidades face às mudanças nos seus padrões alimentares. O objetivo é que este índice sirva não apenas para análise académica, mas também como base para o desenvolvimento de políticas públicas mais justas e eficazes em termos de segurança alimentar, saúde e valorização dos modos de vida tradicionais.
O estudo Diversidade biocultural alimentar e resiliência: o caso da Amazónia brasileira em transição nasce de uma colaboração entre o CE3C, o ICS-ULisboa, a Universidade Federal do Amazonas e o grupo investigação em Territorialidades e Governança Socioambiental na Amazônia do Instituto Mamirauá. Daiane da Rosa integra o Doutoramento em Ciências da Sustentabilidade e conta com a orientação da investigadora CE3C Cristina Branquinho.
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